// Workshops, Crises Pessoais e As Maravilhas Da Linguagem

“Quando você contempla o Abismo, ele também olha para dentro de você” – Nietszche

Produzir uma fotografia, de certa forma, é como contemplar um espelho, sabendo que a sua imagem vai ficar presa lá, visível para os outros, mesmo que você saia da frente desse espelho.

E essa foto que produzimos é uma escultura louca e multidimensional, parte sonho, parte realidade – a parte sonho dela faz dela algo praticamente incontrolável. Também é o que pode fazer dela algo especial.

Pirei? Tomei bolinha? Ainda estou de ressaca do Natal? Por que estou falando essas coisas aparentemente sem nexo? Não gente, não estou maluco. Tenho lá minhas razões, que já vão ficar evidentes.

A educação fotográfica começa pela técnica, pelo lado “artesanato” da coisa. Aprendemos a expor, a iluminar, a compor. Sempre seguindo fórmulas matemáticas e receitas bem exatas, vamos criando nossa linguagem fotográfica, feito bebês que começam a balbuciar as primeiras palavras. Saímos pelas ruas, registrando tudo quanto é pôr-do-sol, velhinha na janela, gato e mulher bonita. E quanto mais apurada a nossa técnica, mais a foto final se parece ao que queríamos retratar. É como se fôssemos polindo o nosso espelho, para que ele fique cada vez mais preciso e nítido, para que ele mostre cada vez melhor o que está defronte dele.

E aí?O que acontece depois?

Nos vemos perfeitamente. Vemos o reflexo perfeito de um camarada que parece querer dizer algo – dá até vontade de dizer para ele: “Fala!”. Mas ele não diz nada. Talvez porque não saiba o que dizer, ou como dizer. Fato é que ele nunca treinou falar para audiências de espelho.

Foi essa mudez que me surpreendeu em um dos momentos críticos do workshop de nu autoral que fiz com o fotógrafo italiano Settimio Benedusi, no início de dezembro. Não costumo fazer longos comentários sobre cursos que fiz, mas este em especial mudou muito da minha maneira de ver a fotografia.

Quando fotografamos, é natural e intuitivo envolver-se muito com o lado “realidade” da foto. Mostrar o que é belo – por isso tanta velhinha, gato e mulher bonita – exibir nossa técnica, nosso domínio da reprodução, dos tons. E é muito fácil esquecer que o que realmente faz uma foto marcante é a parte “sonho” da foto. É gravar seus pensamentos na imagem, de uma maneira que desperte pensamentos específicos nos observadores. Fazer dela um efetivo meio de comunicação, tão claro e preciso como uma foto é capaz de ser.

Já pararam para pensar em como somos passivos diante da fotografia, a maior parte do tempo? Simplesmente vamos reagindo ao belo, registrando, documentando o que nos impressiona, sem nos preocuparmos em como isso pode ser potencializado, como pode ser transmitido com a maior clareza possível. Registramos da maneira mais técnica possível, adicionamos alguns rococós na pós-produção e rezamos para que nosso observador reaja a essa visão da mesma maneira que reagimos ao presenciá-la ao vivo.

Na maior parte do tempo, essa reação não ocorre.

OK. Descobriu a América, dirão alguns – mas foi surpreendente para praticamente todos aqueles que estavam na mesa no início do workshop, todos fotógrafos, e em diferentes estágios de evolução na fotografia. Surpreendente não na teoria, porque é muito óbvio para alguns que é necessário comunicar algo através da imagem. Surpreendente na prática, porque nosso próximo passo seria elaborar um ensaio de nu autoral. Não o nu pelo nu, mas a nudez como parte de uma comunicação clara e objetiva.

E aí é que o bicho pegou.

Privados do subterfúgio da beleza, sem poder trapacear com imagens lindas como as modelos – porém vazias – a nossa reação foi correr para o extremo oposto. Queríamos retratar nossas almas, todas as angústias, críticas, questionamentos e seja mais lá o que se pode enfiar em uma peça de arte. Tudo de uma vez.

E Settimio foi derrubando nossos ambiciosos projetos. Um a um. Íamos tropeçando em tudo que é obstáculo: a mirabolância dos projetos, a falta de tempo, fora o maior de todos os empecilhos…

Falta de clareza. Nossos conceitos não estavam claros nem para nós mesmos.

Para um fotógrafo, nada é mais sofrido do que essa falta de clareza, essa mudez do espelho. Aquela altura do campeonato, descobrir que ninguém estava entendendo “patavinas” do que você falava era dureza. E isso mexe com o brio de qualquer um.

– “A tarefa de vocês é muito simples. Dificílima, mas muito simples”, disse Settimio, talvez em uma tentativa de amenizar a crise que se instalou na turma toda. Quase todos viramos a noite acordados – alguns tentando tornar seus projetos mais claros, outros começando do zero. Que história contar?

Qual será o sonho que nossas imagens despertarão?

A grande lição que ficou daquele dia de crise – e do restante do curso, que durou quatro dias ao todo – é que ao ver uma grande imagem, ela nos desperta sonhos maravilhosamente complexos. E acreditamos piamente que essa complexidade é totalmente intencional e controlada – o fotógrafo era um gênio, capaz de codificar tudo perfeitamente.E ficaremos carecas de frustração se tentarmos fazer isso.

O que Settimio nos mostrou é que esses sonhos complexos nascem de uma intenção simples, quase simplória. Definível em cinco palavras, às vezes, apenas em uma. É exatamente essa simplicidade – que nos parece pobreza à primeira vista – que torna a imagem uma semente viável para ricos pensamentos e impressões. Um conceito complexo demais torna uma imagem impossível de ler.

E é essa simplicidade que faz com que uma imagem adquira força, legibilidade, clareza. É isso que faz com que mesmo uma imagem tecnicamente imperfeita seja impressionante – a mensagem está tão limpa que é fácil de entender, mesmo fora de foco. E assim sendo, causa sonhos maravilhosos.

Ah, a propósito, no dia seguinte à crise geral os ensaios ficaram sensacionais – e todos nós voltamos para casa com a sensação de termos nos superado, cheios de novas idéias e projetos.  E já não nos sentimos tão passivos em relação à nossa fotografia.

Nada mal para um workshop, não?

Alex Villegas

Fotógrafo e photoshopper, com mais de 10 anos de experiência em tratamento de imagens, produção gráfica e design. É autor do livro O Controle da Cor – Gerenciamento de cores para fotógrafos e ministrar cursos sobre o assunto no IIF

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