// Fotografia: Suporte da Memória, Instrumento do Devaneio (Parte final)

Instrumento de Devaneio

Desde seu surgimento, uma parcela de artistas se dedica , com a fotografia, a criar situações que não necessariamente faziam referência a acontecimentos reais. Descobriram nela um importante instrumento de expressão, uma vez que também fala aos sentidos: através de elementos meramente visuais, comunica-se com o tato, olfato e paladar. Foram as experimentações acontecidas nas vanguardas modernas, sobretudo as do surrealista Man Ray, que demonstraram este processo. As chamadas rayografias, fotogramas e solarizações proporcionaram maior liberdade criativa às imagens, aproximando-as do onírico.

Fig. 02 – Man Ray,  woman, 1931.

Dentre os nomes de maior destaque nesta área está Duane Michals, fotógrafo contemporâneo, nascido na Pensilvânia em fevereiro de 1932, dedicou-se a fotografar coisas que não podem ser vistas, ou seja, que não se encontram na realidade. Não tem a intenção de mostrar as coisas como são, mas como elas poderiam ser, ou ainda, como elas são em seu próprio imaginário.  Na maioria das vezes trabalha com seqüências, já que não conseguiria colocar em uma única imagem todos os elementos necessários à compreensão da história tal como ele imaginou. Nas figuras abaixo observa-se um exemplo de seu trabalho, no qual um anjo que, cedendo às tentações carnais entrega-se ao amor de uma humana, pagando com a perda de suas asas. (Ver fig. 04).  Fica claro que Duane, utilizando-se dos conceitos, técnicas e linguagem fotográfica, constrói, dá vida a uma cena que nasceu em sua imaginação.

Fig. 04 – seqüência Duane Michals, The Fallen Angel

Não existe uma maneira objetiva de ver, assim como não há uma única forma de contar a mesma história. A máquina fotográfica é um equipamento cuja internalização de conhecimentos anteriores a torna capaz de criar linguagens, mesmo quando se objetiva o registro puro e simples: a escolha do assunto, do recorte, do equipamento, dos tempos de obturador e abertura de diafragma, configuram um processo que acaba por conferir ao dado real uma série de peculiaridades que transformam a imagem final em um ponto de vista sobre o assunto. A máquina é então um instrumento, que difere do pincel, da aquarela, do lápis e das tintas por ter limites técnicos e plásticos diferenciados e mais delineados.

Entretanto, não é na impressão ou revelação da imagem que o processo termina, mas no seu leitor. E esta leitura acontece de maneiras tão distintas quanto forem seus observadores, já que o repertório sociocultural influencia na forma como se interpreta a cena fotografada. Isto quer dizer que as imagens não são passiveis de uma única leitura, elas dialogam com seu receptor de acordo com seu repertório ou, como disse Boris Kossoy: ‘ a fantasia mental desloca o real em conformidade com a visão de mundo do autor da representação e do observador que a interpreta segundo seu repertório particular’.

Nunca apenas registro, porém também não somente intenção estética. Os registros são interpretações e as abstrações não saem apenas do inconsciente: sempre existe um objeto registrado, mesmo que distorcido. Sendo assim, a análise de uma fotografia não deve esgotar-se apenas em seu assunto ou aquilo que ela retrata, mas expandir-se para todos os elementos que compõem o artefato, para que, sistematizando as leituras, a forma como ela dialoga, suas estruturas internas possam ser compreendidas.

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Confira as duas primeiras partes desta matéria através dos links:

Fotografia: Suporte da Memória, Instrumento do Devaneio
Fotografia: Suporte da Memória, Instrumento do Devaneio (Parte 2)

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Referências Bibliográficas:

BREDEKAMP, Horst . Actes d’images comme témoignage et comme jugement. Disponível em: http://trivium.revues.org/index223.html

KOSSOY, Boris. Fotografia e Memória: reconstituição por meio da fotografia. Em: SAMAIN, Etienne (org). O Fotográfico. São Paulo: Hucitec, 2006.

KOSSOY, Boris. Fotografia e História. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001. 2° ed.

WOLFFLIN, Heinrich. Conceitos fundamentais da história da arte. São Paulo: Martins Fontes, 1984.

MICHALS, Duane. The essential Duane Michals. Boston: Bulfinch Press, 1997.

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Lila Souza
Lila Souza é arquiteta, urbanista, especialista em fotografia pela Universidade Estadual de Londrina, mestranda em Multimeios pelo departamento de cinema no Instituto de Artes da UNICAMP e dá aulas de Técnicas de composição no Instituto Internacional de Fotografia. Foi aceita pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq –  para o grupo de Comunicação e História atrelada à linha de pesquisa Mídia e Memória

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