// Fotografia: Suporte da Memória, Instrumento do Devaneio (Parte 2)

Não há como negar a importância da fotografia na construção da memória, seja ela individual ou coletiva, está claro que ela inaugura uma nova maneira de olhar o mundo: antes dela, o deslocar-se era condição primordial para conhecer novos lugares. A possibilidade de reproduzir centenas de cópias idênticas e o desenvolvimento das técnicas de impressão, abrem caminho para o conhecimento visual do mundo, além de permitir que se coloque, lado a lado em uma mesma página de livro, lugares ou objetos que não poderiam ser vistos um em relação ao outro. É uma nova maneira de construção do saber proporcionada pela imagem. Para Boris Kossoy¹, ‘Micro aspectos do mundo passaram a ser cada vez mais conhecidos através de sua representação. O mundo se viu aos poucos substituído por sua imagem fotográfica ( …). Tornou-se assim, portátil e ilustrado’.

Ao falar sobre memória este mesmo autor renuncia as questões referentes a relação que ela mantém com o real e propõe um pensamento sobre as várias realidades que o documento fotográfico comporta simultaneamente. Para ele, a primeira realidade é a do fato acontecido no passado e documentado pela fotografia. Tal realidade é ‘fixa, imutável, irreversível; refere-se à realidade do assunto em seu contexto espacial e temporal, (…). É este o contexto da vida: primeira realidade. A fotografia, isto é, o registro criativo daquele assunto, corresponde à segunda realidade, a do documento. A realidade nele registrada também é fixa e imutável, porém sujeita a múltiplas interpretações² .

De todas essas faces da imagem, apenas uma é explícita: a iconográfica. Entre o referente e sua representação existe uma série de processos que se perderam com o tempo. Mas é somente resgatando esses processos que se pode chegar perto de saber qual foi, de fato, a primeira realidade. Este autor defende que ‘uma foto é uma representação plástica indivisivelmente incorporada a seu suporte e resultante dos procedimentos tecnológicos que a materializaram³’  e sendo assim, analisá-la como objeto é parte inerente ao processo: saber quem é seu autor, quando foi feita, se é original, em que tipo de papel foi impressa, diz tanto quanto o que nela está gravado.

É nesta mesma linha de não-passividade da imagem que Horst Bredekamp(4)  tece seus comentários acerca das imagens, não apenas fotográficas, que contam a história da Segunda Guerra Mundial. Em um texto que foi impresso no catálogo de uma exposição fotográfica no museu histórico de Berlim, acerca da capacidade testemunhal e de julgamento da imagem, o autor, defendendo um caráter performático da imagem, busca saber o que elas mobilizam nas pessoas e de que forma conseguem dialogar com seu observador. Em uma série de fotografias onde soldados alemães (ver figura 01.) observam uma imagem da execução de civis, o autor reflete sobre a meta-imagem para repensar os meios da própria imagem, tentando localizar o jogo psicológico e social que elas contém.

Fig. 01 – Soldados alemães analisam fotografias, em outubro de 1944, Fotografia, Ivry-sur-Seine, ECPAD-The Library of Defense, DAT 3694L18.

É fato que tais imagens possuem caráter testemunhal, mas também está claro que não são desprovidas de intencionalidade estética. Para Kossoy, o registro de assuntos que por uma razão ou outra demandaram a ação de um fotógrafo representarão sempre um meio de informação e serão portadoras de valor documental, iconográfico, mas, não necessariamente tais imagens são despidas de valor estético. Para ele, ‘A informação se vê registrada dentro de uma preocupação plástica’ e, portanto, ‘qualquer que seja o assunto registrado na fotografia, esta também documentará a visão de mundo do fotógrafo. A fotografia é, pois, um duplo testemunho: por aquilo que ela nos mostra da cena passada, irreversível, ali congelada fragmentariamente, e por aquilo que nos informa acerca de seu autor’(5).

É justamente esta liberdade criativa que nos levará ao próximo ponto da discussão que discutiremos no último post… fiquem atentos ao site do IIF

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¹KOSSOY, Boris. Fotografia e História. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001. 2° ed. Página 27.

²KOSSOY, Boris. Fotografia a Memória: reconstituição por meio da fotografia. Em: SAMAIN, Etienne (org). O Fotográfico. São Paulo: Hucitec, 2006.

³KOSSOY, Boris. Fotografia e História. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001. 2° ed. Página 40.

(4)BREDEKAMP, Horst . Actes d’images comme témoignage et comme jugement. Disponível em: http://trivium.revues.org/223

(5)KOSSOY, Boris. Fotografia e História. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001. 2° ed. Página 49

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Lila Souza
Lila Souza é arquiteta, urbanista, especialista em fotografia pela Universidade Estadual de Londrina, mestranda em Multimeios pelo departamento de cinema no Instituto de Artes da UNICAMP e dá aulas de Técnicas de composição no Instituto Internacional de Fotografia. Foi aceita pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq –  para o grupo de Comunicação e História atrelada à linha de pesquisa Mídia e Memória

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