// Encaixotando: Moda, Arte e Delírios Pessoais

Quando comecei a estudar fotografia, sonho meu era ser um fotógrafo reconhecido e bem de vida – mas claro que esse sucesso financeiro não poderia me custar a criatividade. Eu queria ter, além do trabalho “comercial”, um trabalho “autoral” consistente.

Eu e a torcida do Corinthians, claro.

Com o passar dos anos, acabei percebendo que essa dualidade me fez muito mal, além de me trazer enormes desvios e tropeços à carreira. Segui por muito tempo por caminhos que não eram meus, e era a coisa mais angustiante do mundo olhar para uma foto fantástica sem saber o que fazia dela tão boa assim. E essas fotos não estavam em galerias, estavam em revistas comuns de moda. Não era a maestria técnica – eu sempre vejo fotos tecnicamente perfeitas, mas totalmente insossas. Era alguma outra coisa.

Fotos boas são sempre fotos cheias de algo.

Não necessariamente conseguimos identificar exatamente do que elas estão cheias – mas sempre percebemos a tensão, a exuberância, a falta de estabilidade que mora nelas. Independente da finalidade para a qual foram elaboradas.

A mesma alma que existe nas fotos nas quais os criadores tiveram total liberdade, também reside nas fotos onde eles aparentam não ter tido liberdade nenhuma.

A famosa editora de moda da Vogue americana, Anna Wintour, disse uma vez:

“O trabalho do editor de moda é ‘mostrar’ as roupas. Afinal, é por esse motivo que o público compra nossas revistas. Nossas necessidades são simples. Queremos que um fotógrafo pegue um vestido, faça a garota parecer bonita, nos dê muitas imagens para escolher, e não nos dê trabalho. Já os fotógrafos – se forem minimamente bons – querem criar arte”.

Já Javier Vallhonrat, artista e fotógrafo de moda, fala um pouco sobre o outro lado:

“O que propõem as páginas de uma revista de moda não é um aprofundamento do trabalho de um determinado artista, mas sim uma pertinência momentânea que se dá pela coincidência. É afirmar que o artista falava da realidade de uma maneira que a moda pode utilizar pontualmente para propor um modelo de comportamento, ou mesmo um olhar ‘alternativo’”.

Então, o que existe na fotografia de moda é uma colaboração dada na intersecção dos interesses. O artista quer colocar suas questões, sua realidade, e coloca essa visão a serviço dos interesses dos editores, criando perspectivas e olhares que são muito úteis na construção dos modelos de comportamento necessários para manter a máquina da moda girando.

Uma fotografia autoral encaixotada.

Encaixotada pelos interesses comerciais, mas ainda autoral. Grandes fotógrafos produzem imagens de grande impacto, mesmo dentro desses limites, e são plenamente capazes de dar vazão a sua veia artística dentro dos limites comerciais. E uma das provas é o próprio Javier Vallhonrat.

Fotógrafo madrileño nascido em 1953, Javier licenciou-se em Belas Artes, tornando-se artista relevante na Espanha – é conhecido por seus questionamentos e diálogos entre diversas linguagens na fotografia, mas sem abandonar o rigor formal e sua abordagem inequivocadamente estética. Lecionou Belas Artes na Universidade de Cuenca, e é figura conhecida no meio acadêmico espanhol.

Mas fora do circuito artístico e acadmico, Javier é ainda mais conhecido por ser um dos mais impressionantes e criativos fotógrafos de moda, sendo presença constante nos editoriais na Vogue UK e Vogue Germany, além de ter clicado diversas campanhas para clientes como Shiseido, John Galliano e L’Oreal . O que o coloca em uma posição privilegiada para mover-se e expressar-se em todos esses terrenos.

Uma das grandes constantes no trabalho de Vallhonrat é o questionamento da linguagem fotográfica: a ideia da fotografia como construção, ou a relação que existe entre construção, realidade construída e fotografia. Através da criação de imagens surreais, supostamente absurdas, ele consegue colocar em crise a suposta autenticidade da fotografia: o que se apresenta diante de nossos olhos é uma construção simples e geométrica, que faz uso da própria fotografia para “disparar” a percepção de um universo diferente, que não existiria para ser retratado.

São engodos, que precisam da fotografia para existir.

Em uma de suas séries, “Acaso”, ele trabalha com a tensão que existe entre as ideias de moradia, individualidade, proteção e a sensação de pertencer a algum lugar.

E a série ecoa estrondosamente neste editorial feito com Charlotte Gainsbourg para a Vogue Nippon:

ou mesmo neste editorial feito para a revista Flair:

Na segunda reunião do grupo de estudos do IIF, foi essa a bola levantada: existe mesmo a separação entre a fotografia autoral e a comercial, ou são apenas caixas diferentes para o mesmo conteúdo? Mais ainda, a tal da fotografia autoral não seria exatamente um campo de testes do qual a sua fotografia comercial se alimenta?

Ao mostrar poderosas alusões à mitologia através das peculiaridades dessa linguagem fotográfica – peculiaridades essas altamente exploradas em suas séries – Vallhonrat consegue uma matéria prima explosiva, mas que ainda assim pode ser moldada em porções mais acessíveis e propósitos mais “mundanos”, como a fotografia de moda. Com a coincidência de interesses, temos fotos que definitivamente têm algo a mais.

No fim das contas, a conclusão que chegamos é que a investigação do meio de comunicação chamado fotografia é sim, indispensável para aquele que quer fazer algo relevante com ele. É necessário conhecer os limites e definições, identificações e contradições da fotografia, para confrontá-los com nossas curiosidades e fascínios.

Afinal, todos devemos ter algo com que “encher” nossas fotos, caso contrário, ficaremos apenas palidamente ecoando as fotos de outros, repetindo ícones enfraquecidos pela nossa falta de propriedade com a linguagem fotográfica. E nossos experimentos sempre encontrarão ecos em nosso trabalho.

Mesmo que esse trabalho jamais passe perto de um museu ou galeria.

Alex Villegas

Fotógrafo e photoshopper, com mais de 10 anos de experiência em tratamento de imagens, produção gráfica e design. É autor do livro O Controle da Cor – Gerenciamento de cores para fotógrafos e ministrar cursos sobre o assunto no IIF

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