// Dilemas do fotojornalismo, do ponto de vista de um retocador

Texto: Alex Villegas

Uma das grandes polêmicas dos últimos tempos é o prêmio de fotojornalismo conferido a Chip Litherland no concurso Pictures of The Year International. Nenhuma novidade, tampouco razão de polêmica, se não fosse o processo pelo qual a imagem foi obtida: não foi utilizada uma tradicional – mas já? – DSLR, mas um tímido telefone celular. E não apenas isso: a imagem não está com as cores “reais”, mas foi modificada através do aplicativo de tratamento Hipstamatic.

Adulterada, será? Quando se trabalha com tratamento de imagem/manipulação e gerenciamento de cores, aprende-se rapidamente que não há verdade em uma fotografia, qualquer que ela seja. Cores, contrastes, tons – nada daquilo é real, é apenas uma interpretação. No jargão dos retocadores, há uma nítida diferença entre tratamento, interpretação/reinterpretação de cor e manipulação – são três coisas completamente diferentes, mas apesar de tudo, as duas primeiras são frequentemente confundidas pelo público.

Tratamento é o ajuste das características presentes na imagem já construída. Ajuste de contraste, aumento da nitidez, redução de ruído, ajustes menores em tons de pele, luz e sombra. A finalidade aqui é preparar essa imagem para que ela seja reproduzida em diferentes mídias sem perder as características que já possui. Já a interpretação de cor faz parte da construção da imagem. Quando uma câmera digital captura luz, ela precisa codificar essa luz capturada para que isso se torne uma imagem reconhecível, com características definidas – e isso inclui especificar as cores, contraste, ruído e nitidez de acordo com parâmetros especificados nos menus de configuração, seja na própria câmera, seja em um aplicativo como o Lightroom.

Sabendo disso e do fato que toda percepção é relativa – câmeras diferentes registram as coisas de maneira diferente – nós, retocadores e tratadores de imagem, usamos e abusamos da reinterpretação de cor, que é a mudança das cores da imagem. Como se a câmera enxergasse as coisas de maneira diferente. O que já mostra o primeiro dos dilemas, que é: se as cores/tons de uma imagem não são reais de início, alterá-los vai aproximá-los ou distanciá-los da realidade?

Quer ver um exemplo de reinterpretação de cor? Converta uma foto para PB. Olha só que interessante: ao converter uma imagem para PB, estamos usando uma estética extremamente associada ao fotojornalismo, por ter figurado em jornais por décadas – mas também estamos esquecendo que o mundo sempre foi colorido e que o único modo disponível de captura nessas décadas era PB. Capa e Bresson usaram sempre o que estava disponível. A fotografia PB digital é uma reinterpretação de cor e tom, e das mais radicais, visto que hoje em dia a captura digital é colorida.

Isso faria do PB digital uma falcatrua?

De outro lado, há o fotógrafo que trabalha em HDR com o argumento de que nossos olhos vêem algo muito mais próximo do HDR do que da contrastada fotografia tradicional. Para mim, ele está tentando ser mais preciso em sua documentação. Do que eu posso acusá-lo?

Como retocador, não vejo um único pixel acrescido ou manipulado na foto premiada. Não houve manipulação, nenhum elemento foi acrescentado ou removido. O fato é o mesmo. Mas é inegável que senti, naquele visual retrô, naquela interpretação de cores, uma poderosa referência aos anos 60 e 70, e às guerras que ocorreram nessas décadas. Se tem alguma coisa que essa foto me disse, foi “Bom dia, Vietnam!”. E é claro que tudo o que li nessa imagem foi disparado por essa impressão inicial. As cores têm sim uma pesada influência sobre a mensagem que a imagem carrega.

Então, estaria resolvido: o fotojornalismo para ser crível precisa de imagens exatamente como saíram da câmera, apenas com tratamento. Mas esse raciocínio tem um problema. O problema é que tratamento é feito em cima de imagem já construída – o que nos leva ao segundo dilema:

– Quem constrói uma imagem mais próxima do real, a câmera ou o fotógrafo?

Quando abro um arquivo RAW, não há muita coisa definida ali – a representação é bem flexível, porque a imagem ainda não foi completamente construída. Na verdade, nesse instante não tenho muita informação sobre o que tenha sido visto por ali. Preciso da presença do fotógrafo, para que ele me conte o que viu na hora, e para que possamos juntos chegar a algo que represente adequadamente o fato. Mesmo carregada de uma boa dose de subjetividade, sinto que essa construção posterior da imagem pode torná-la mais sólida, mais comunicativa – é o que o fotógrafo viu, não a câmera. Então isso adiciona força visual às imagens, mesmo que não se adicione ou remova um único pixel.

Já na outra circunstância – o registro mais “engessado” pelo sistema de captura, como JPEG ou cromo escaneado – vejo arquivos já construídos, com suas características definidas pela câmera/filme/scanner, restando apenas o tratamento para ser feito. Mesmo assim, sem intervenções externas, a diferença entre as imagens é gritante, porque cada um dos sistemas de captura hoje existentes enxerga cores e tons de formas diferentes. Acredito que vejamos essas diferenças com olhos mais benevolentes porque estamos acostumados a essas interpretações – viraram clássicos, de certa forma: atire a primeira pedra quem nunca disse “eu amo o TriX”, ou “que saudades do Velvia”.

No fim das contas, com DSLR ou celular, RAW ou JPEG, PB ou em cores, tudo o que teremos sempre serão cenas, um pouco incompletas, algo inexatas. Se elas contam ou não a verdade, já é toda uma outra história.

Texto originalmente publicado na revista Photo Magazine, Edição 37.

 

Alex VillegasAlex Villegas 
Alex Villegas é fotógrafo e retocador, com mais de 10 anos de experiência em tratamento de imagens, produção gráfica e design. Atualmente, dedica-se à fotografia, pós-produção e educação fotográfica, ministrando cursos e workshops sobre o assunto desde 2005, por todo o Brasil. 
É autor do livro O Controle da Cor – Gerenciamento de Cores para Fotógrafos, e colunista das revistas Photos e Imagens e Photo Magazine, além de pertencer ao conselho editorial da revista Photoshop Creative Brasil.

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